«As crianças foram consideradas, na nossa tradição cultural e jurídica, como objecto de poder do pater famílias que tinha, no direito romano, o poder de vida ou de morte sobre os filhos, o poder de venda e de exposição. Os Códigos Civis modernos, do século XIX e do século XX, antes das reformas das décadas de setenta e oitenta, conferiam ao pai, chefe da família, o poder de exercer o poder paternal, expressão, curiosamente mas não inocentemente, mantida na legislação actual. Tal significa que, nas nossas representações mentais, ainda que ao nível do inconsciente ou do implícito, continuamos a ver as crianças como objecto de propriedade dos pais. Esta mentalidade, juntamente com a prevalência dos laços de sangue relativamente aos vínculos afectivos, tem influenciado as decisões relativas ao destino das crianças, objecto de litígios judiciais entre adultos que a reclamam. A este propósito tenho defendido que, sempre que há um conflito entre os pais de uma criança, após um divórcio ou separação, ou entre os pais e terceiras pessoas que cuidam, de facto, da criança, devem assumir a responsabilidade por esta, os adultos que cuidam da criança no dia-a-dia. São estes – na linguagem das ciências sociais, que deve ser adoptada pelo Direito – as pessoas de referência da criança, com quem ela estabeleceu a sua relação emocional mais importante e decisiva para o seu desenvolvimento físico e mental.
Os tribunais, sempre confrontados com falta de tempo e de meios para as suas decisões, têm um processo fácil e rápido de realizar o interesse da criança: averiguar qual dos adultos tem cuidado da criança, da sua saúde, segurança, alimentação e educação, reconstruindo a história de vida da criança, desde o seu nascimento. Trata-se de uma prova dirigida a factos objectivos e fáceis de demonstrar, evitando-se o recurso a avaliações psiquiátricas complicadas, sempre subjectivas, e que prolongam os processos, desrespeitando a noção de tempo da criança. A identificação da pessoa de referência pode ser realizada através da audição dos pais, da criança, de membros da família alargada, professores ou vizinhos, que a conheçam bem, e através do inquérito social.
O primeiro dever de um tribunal, que tem a seu cargo uma decisão que vai marcar a vida de uma criança para sempre, é respeitar os seus afectos. Para tal, a lei confere-lhe amplos poderes de investigação, ao abrigo dos quais o tribunal pode ordenar todas as diligências que julgue necessárias para a decisão, não se limitando a ouvir a opinião dos adultos, a analisar as suas condições de vida e personalidade. Todas as entidades com competência para contribuir para a decisão devem auscultar os sentimentos da criança e assumir um papel activo na promoção dos seus direitos. A criança é o centro de todos os processos que lhe dizem respeito. Pai e mãe são aqueles que o seu coração reconhece como tal. Os conceitos de paternidade e de maternidade, no sentido jurídico, têm sido circunscritos à biologia.
É tempo de estender a protecção constitucional destes valores à maternidade e à paternidade afectivas, desacompanhadas dos laços de sangue, e de reconhecer, na Constituição, um direito da criança ao afecto. E gostaria de terminar dizendo que não são as crianças que têm de ser inocentes, mas nós os adultos é que temos de ser inocentes com elas. Nós não dispomos de qualquer poder de correcção sobre as crianças, devemos é corrigir-nos a nós mesmos, para criar um mundo melhor para elas.»
Os tribunais, sempre confrontados com falta de tempo e de meios para as suas decisões, têm um processo fácil e rápido de realizar o interesse da criança: averiguar qual dos adultos tem cuidado da criança, da sua saúde, segurança, alimentação e educação, reconstruindo a história de vida da criança, desde o seu nascimento. Trata-se de uma prova dirigida a factos objectivos e fáceis de demonstrar, evitando-se o recurso a avaliações psiquiátricas complicadas, sempre subjectivas, e que prolongam os processos, desrespeitando a noção de tempo da criança. A identificação da pessoa de referência pode ser realizada através da audição dos pais, da criança, de membros da família alargada, professores ou vizinhos, que a conheçam bem, e através do inquérito social.
O primeiro dever de um tribunal, que tem a seu cargo uma decisão que vai marcar a vida de uma criança para sempre, é respeitar os seus afectos. Para tal, a lei confere-lhe amplos poderes de investigação, ao abrigo dos quais o tribunal pode ordenar todas as diligências que julgue necessárias para a decisão, não se limitando a ouvir a opinião dos adultos, a analisar as suas condições de vida e personalidade. Todas as entidades com competência para contribuir para a decisão devem auscultar os sentimentos da criança e assumir um papel activo na promoção dos seus direitos. A criança é o centro de todos os processos que lhe dizem respeito. Pai e mãe são aqueles que o seu coração reconhece como tal. Os conceitos de paternidade e de maternidade, no sentido jurídico, têm sido circunscritos à biologia.
É tempo de estender a protecção constitucional destes valores à maternidade e à paternidade afectivas, desacompanhadas dos laços de sangue, e de reconhecer, na Constituição, um direito da criança ao afecto. E gostaria de terminar dizendo que não são as crianças que têm de ser inocentes, mas nós os adultos é que temos de ser inocentes com elas. Nós não dispomos de qualquer poder de correcção sobre as crianças, devemos é corrigir-nos a nós mesmos, para criar um mundo melhor para elas.»
por Clara Sottomayor.