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terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Tempo de mudança - "A Criança a quem cuida dela"

«As crianças foram con­sideradas, na nossa tradição cultural e ju­rídica, como objecto de poder do pater famílias que tinha, no di­reito romano, o poder de vida ou de morte sobre os filhos, o poder de venda e de expo­sição. Os Códigos Civis modernos, do sécu­lo XIX e do século XX, antes das reformas das décadas de setenta e oitenta, conferiam ao pai, chefe da família, o poder de exercer o poder paternal, expressão, curiosamente mas não inocentemente, mantida na legis­lação actual. Tal significa que, nas nossas representações mentais, ainda que ao ní­vel do inconsciente ou do implícito, conti­nuamos a ver as crianças como objecto de propriedade dos pais. Esta mentalidade, juntamente com a prevalência dos laços de sangue relativamente aos vínculos afecti­vos, tem influenciado as decisões relativas ao destino das crianças, objecto de litígios judiciais entre adultos que a reclamam. A este propósito tenho defendido que, sem­pre que há um conflito entre os pais de uma criança, após um divórcio ou separação, ou entre os pais e terceiras pessoas que cui­dam, de facto, da criança, devem assumir a responsabilidade por esta, os adultos que cuidam da criança no dia-a-dia. São estes – na linguagem das ciências sociais, que de­ve ser adoptada pelo Direito – as pessoas de referência da criança, com quem ela esta­beleceu a sua relação emocional mais im­portante e decisiva para o seu desenvolvi­mento físico e mental.
Os tribunais, sempre confrontados com falta de tempo e de meios para as suas de­cisões, têm um processo fácil e rápido de realizar o interesse da criança: averiguar qual dos adultos tem cuidado da criança, da sua saúde, segurança, alimentação e educação, reconstruindo a história de vi­da da criança, desde o seu nascimento. Tra­ta-se de uma prova dirigida a factos objec­tivos e fáceis de demonstrar, evitando-se o recurso a avaliações psiquiátricas compli­cadas, sempre subjectivas, e que prolon­gam os processos, desrespeitando a noção de tempo da criança. A identificação da pessoa de referência pode ser realizada através da audição dos pais, da criança, de membros da família alargada, professores ou vizinhos, que a conheçam bem, e atra­vés do inquérito social.
O primeiro dever de um tribunal, que tem a seu cargo uma decisão que vai mar­car a vida de uma criança para sempre, é respeitar os seus afectos. Para tal, a lei con­fere-lhe amplos poderes de investigação, ao abrigo dos quais o tribunal pode orde­nar todas as diligências que julgue neces­sárias para a decisão, não se limitando a ouvir a opinião dos adultos, a analisar as suas condições de vida e personalidade. Todas as entidades com competência para contribuir para a decisão devem auscultar os sentimentos da criança e assumir um papel activo na promoção dos seus direi­tos. A criança é o centro de todos os pro­cessos que lhe dizem respeito. Pai e mãe são aqueles que o seu coração reconhece como tal. Os conceitos de paternidade e de maternidade, no sentido jurídico, têm si­do circunscritos à biologia.
É tempo de estender a protecção consti­tucional destes valores à maternidade e à paternidade afectivas, desacompanhadas dos laços de sangue, e de reconhecer, na Constituição, um direito da criança ao afec­to. E gostaria de terminar dizendo que não são as crianças que têm de ser inocentes, mas nós os adultos é que temos de ser ino­centes com elas. Nós não dispomos de qual­quer poder de correcção sobre as crianças, devemos é corrigir-nos a nós mesmos, para criar um mundo melhor para elas.»


por Clara Sottomayor.