Pesquisar neste blogue

sábado, 1 de dezembro de 2012

Faltavam 10 euros





   Já lá foi o tempo. Como dizia Miguel Sousa Tavares: "Apenas se ouvem os aviões a pousar", numa terra que não podia ser outra, é apenas Cabo Verde. Terra de gente que com pouco vive bem, gente humilde onde abrir a porta de casa é um hábito, e receber bem o outro uma tradição, com a qual nos identificamos, porque eles também são nossos. 
   Escrevi, ainda lá estava, num diário que outrora me roubara aquele que dele não precisava, porque eram só palavras, que apenas dela podiam conhecer quem delas tinham vivido. 
   Volta o tempo e regressa a memória, da rapariga que, ao longe, sentada numa pedra, desesperava, num olhar ténue, bonita, meiga, de quem transmitia o sofrimento, uma dor ao longe perceptível, que procurava o isolamento como forma de a combater. Cheguei-me perto, e sentei-me ao seu lado. Quando perguntei se estava tudo bem, do outro lado apenas reagia o olhar, no meio do silêncio insurtecedor, que conseguiu apenas fazer mexer e saltitar a pedra onde estavamos sentados. Cultivados pelo silêncio, surgiu uma voz calma, suave e pouco audivel, de quem mal conseguia expressar o que sentia, porque tudo era dor. Vivia com a avó, seu porto de abrigo, que amava e jamais a quer esquecer e ver perecer, mulher generosa, que criou a neta, após esta ter sido abondonada pela mãe por não ter condições para a criar. Dizia-me: "só estou aqui porque existe a minha avó", e eu a pensar que o olhar já por si só era expressivo, mas quando chegaram as palavras nada ficava por dizer porque uma palavra tinha vários significados. Qual era o problema ? Respondeu-me: "Tenho o meu dente furado e só tenho consulta no hospital daqui a 6 meses". Impressionante realidade que me atravessa por completo, e fez pensar numa outra possível solução para o sofrimento de quem está condenada a sofrer e habituou-se a viver com o sofrimento. Perguntei: "Não há outro hospital ou outro dentista privado" ? A qual me respondeu: "Sim, há o privado, mas a minha avó não me pode pagar porque é muito caro". Perguntei: "Quanto custa ?", a qual me respondeu : "são 10 euros". 
   Para ajudar não é preciso muito, aqui faltavam uns míseros 10 euros em comparação com o valor incalculável da sua dor, que já só reagia através do olhar e de meras lágrimas, que, de tanta dor, já estavam secas e, persistiam estampadas no rosto, de quem por detrás daquela dor, resistia dia após dia, até chegar a sua vez.